domingo, 18 de abril de 2010

Do estranho caso da menina que não tinha sonhos


Maria era filha de Joana, filha única, sem pai, ou melhor com pai não interessado em criá-la. Desde cedo teve de aprender a se virar sozinha, afinal de contas tinha de ficar a maior parte do tempo sozinha. Se dividia entre os deveres da escola e os deveres do lar, já que sua querida mãe tinha de trabalhar para manter a casa e ainda ter dinheiro para ajudar Dona Leopolda. Joana não teve família, foi menina de rua e teve de fazer de um tudo para conseguir ser alguma coisa que preste na vida. Dona Leopolda foi a mão que ajudou Joana. Não se sabe ao certo onde elas se conheceram, mas se sabe, eu sei porque vivi essa história, que elas se tinham como parentes, algo como mãe e filha, mas sem laços de sangue ou de um passado em comum, a única coisa que tinham de parecido era a força de vida, ambas eram muito perseverantes e tinham uma força de vontade de deixar qualquer pessoa com inveja. Maria não sonhava. Todas as noites ela esperava um sonho, mas nunca teve um um. Nunca sonhou com nada, nem pelada no meio da rua, nem caindo de canto nenhum. Nunca sonhara. Maria nunca notou a falta disso na sua vida, mas sabia que existia isso de sonhar. Uma vez ouviu alguém falar disso, de um sonho que teve e tal, mas ela mesmo nunca teve um. Joana dizia que Maria tinha sonhos, mas que nem sempre a gente consegue se lembrar do que sonhou; contudo, a menina sabia que isso não ocorria com ela,sabia que nunca sonhou com nada, nem sabia o que era isso. O local onde Maria e Joana moravam era bem pobre, não havia muita segurança, não; aliás, não havia segurança nenhuma. Era meio que uma favela, sabe. Joana saia de casa às 4 da manhã e voltava às 8 da noite; Maria saia às 5 e voltava às 12 da escola, o resto da tarde era de afazeres do lar. Limpar, cozinhar, varrer, arrumar, tudo isso era com a pequena Mariazinha. Dava era pena de ver. Uma menina tão nova, tão doce, tão coitada de tudo e de todos. Uma pena mesmo. Certa vez, o açúcar acabou, e a menina teve de ir até a venda do Seu João Moço para comprar mais. No caminho, ela ouviu uma sirene. Será a polícia? Instintivamente ela se encostou na calçada, tentando fugir do carro que vinha com a sirene. Quando notou, estava no chão, ensagüentada. Recebera um tiro no pescoço, ia morrer decerto. A menina não ficou desesperada, apenas caiu no chão, viu o mundo ficando cinza, tudo estava cinza, sentiu um sono muito forte, como se tivesse passado 40 dias sem dormir. Começou a ver pássaros a sua volta, voando pelos ares, tudo girando, pássaros voando e voando. O som do ruflar das asas chamava atenção. Sentia que aquilo deveria ser um sonho, parecia ao menos com a descrição de um. Finalmente, Maria soube o que é sonhar.

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